sexta-feira, 23 de abril de 2010

MARIO QUINTANA

Quando estive em Porto Alegre para uma das edições do Fórum Social Mundial, aproveitei para realizar uma inadiável e tardia visita: conhecer a Casa de Cultura Mário Quintana. Assim como quem vai a Salvador é fundamental conhecer a igreja do Senhor do Bonfim ou o Pelourinho, quem vai a Porto Alegre não pode esquecer de incluir a esse centro de cultura e lazer, situado no prédio em tom róseo onde antes funcionava um hotel que serviu de residência, de 1968 a 1980, ao poeta Mário Quintana.

Chegar à Casa de Cultura foi uma (a)ventura cheia de encantamentos. Fui caminhando calmamente pelas ruas do centro da capital gaúcha, como que cumprindo os mesmos caminhos do velho poeta. Passei por suas vastas e bem cuidadas praças, por suas ruelas decadentes e seus paços imperiais. Seguia os passos do poeta e, com estranha complacência e carinho paternal, observava as pessoas à minha volta. Imaginei o velho Quintana naqueles bancos de praça, em sua tranqüila solitude, lendo seu jornal diário, fumando seu inseparável cigarro e observando a gratuita poesia do cotidiano. Como um príncipe em sua serena sabedoria que só o tempo e a maturidade revelam.

Seguia, curioso e respeitoso, o caminho rumo à casa do poeta. Sempre acompanhei com muito carinho a condição daquele homem já idoso, que, com sua alma de criança, escrevia versos leves de uma singela beleza. Um grande poeta se escondia naquele “velhinho” solitário e frágil, que se abrigava num quarto de hotel. Não um hotel qualquer, mas no Hotel Majestic, também ele cúmplice e vassalo do tempo em sua beleza e majestade. Aquela casa que acolhia o poeta parecia encerrar em seus domínios, e em sua história, rara poesia.

“Eu sou como um velho arqueólogo decifrando as cinzas/ de uma cidade morta” – já disse Quintana em um de seus poemas. O poeta e seus espectros. As minhas retinas, não suficientemente fatigadas pelo tempo, nada percebem. Aos olhos de um poeta menor, um “estrangeiro”, a cidade parece ainda viva em sua urgência e pressa. Mas procuro nas sombras e nas dobras das esquinas, e do tempo, a cidade perdida do poeta Quintana. Procuro a sua poesia dispersa nos descaminhos da cidade; a sua Porto Alegre.

Seguindo seus sinais chego ao velho Majestic em sua imponência tardia. Mas chego tarde. O hóspede célebre já não vive nesse endereço. O Hotel Majestic já não existe. O velho hotel cedeu espaço à casa de cultura que hoje acolhe algumas lojas e bares. Mas onde estariam os aposentos do poeta, seus vestígios? Subi alguns degraus de uma escadaria e encontrei ali uma espécie de memorial ao poeta Mário Quintana. Numa espécie de vitrine estavam dispostos alguns objetos de uso pessoal, um ou outro manuscrito, alguns livros e fotos. Fiquei por um tempo ali contemplando aquele relicário e lembrando alguns de seus poemas, como que numa prece penitente. A sensação foi similar a que sinto quando visitoa igreja do Bonfim, quando vou à Bahia. Fui tomado por forte sentimento de religiosidade e fé. Saí dali fortalecido e renovado na coragem e disposição para enfrentar o mundo.

Saí do velho Majestic e retomei o caminho de volta para a minha barraca. Lembrei do lema do Fórum Social Mundial: um outro mundo é possível. Lembrei de um certo poema do velho Quintana, que hoje uso como uma espécie de mantra: “Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho,/Eles passarão.../Eu passarinho!”. Com a leveza de Quintana fica mais fácil cumprir os caminhos. Quem faz uma visita ao poeta – à sua obra ou à sua casa, afinal os poemas são a verdadeira morada do poeta – experimentará, um pequeno milagre. Os poemas são, na verdade, para todos e não só para os poetas, um abrigo – como as igrejas – que conforta e transforma. Eis o verdadeiro milagre! Depois que visitei a morada do poeta nunca mais fui o mesmo homem. Talvez resida aí o milagre da poesia.

Textos de Mário Quintana:

Da Vez Primeira...

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela, amarelada...
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

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