sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

CHORO DE HOMEM VELHO

As crianças, Rudah, Bernardo, Artur, Helena, Marianas, Henrico, e tantos outros passavam as férias lá, todos netos, uns sanguineos outros por afinidades, a maioria com vinculos de coração. A mangueira já crescida, dependurando cachos de manguinhas rosadas. Eram  daquelas bem pequenas de gosto, cheiro, doçura maior do que a de todas as outras frutas. E, para vergonha minha, nascera sozinha. Um dia olhei e já estava crescida, alguém jogara lá o caroço.
Tinha também um cachorro que nunca mordia ninguém.
Morava ali havia muitos anos. Era uma chácara pequena, casinha jeitosa, que as portas estavam sempre abertas, e as plantas foram crescendo à volta.
Bonita era as  flores logo na entrada, crescida assim sem cuidado, mistura de rosas e temperos e capins que sacudiam aos ventos, só para criar aquela belezura kitsch que eles chamavam de “Quintal do Céu”.
A horta já foi uma coisa minha. Eu e a mulher nos ocupavamos os dias naquele trabalho, que era quase uma brincadeira. Tinham um pequeno bananal que não exigia cuidados. O pessoal que comprava vinha pegar no pé, e o seu Garcides limpava mesmo quando não estavam lá. Dinheiro não dava, só banana, e bastante. Ah, tinha também uma parte de mata, onde eu falava pros netos que morava os Sacis, más a Mula sem Cabeça que também lá residia, mudou-se pra Brasília.
O demônio marrom da barragem varreu tudo, menos a casinha. Tudo tão distante do acidente, sete quilômetros. Em pé só a casa nua, como quando tinha sido construída, desenfeitada.
Era um milagre nenhum deles morrera  no lodo, e se arrepiava todo ao pensar nos netos. O que seria deles sem os netos que amavam cada frutinha nova, e que engoliam as antigas com o suco sujando a boca.
Olhou para trás dos trambolhos, dos galhos atrás da cozinha e até chorou. Chorou grosso, choro de homem velho, as lágrimas passando pelas rugas.
A mulher nem parecia comovida, orava de olhos fechados,  agarrara-se num cachecol de tricô e tricotava sem parar. O trabalho que fazia se parecia com o desastre, não serviria para nada e se enrolava, inútil pelo chão da varanda.
Ela que gostava de cozinhar, não tinha como, é certo, mas o fogão estava lá, as panelas de ferro muito bem curtidas, as colheres de pau que o artista da cidade fizera eleshá muito tempo dependuradas na parede.
Não conseguia entender. Quase todos mortos, e o socador de alho lá firme, como se nada houvesse acontecido. Balançou a cabeça para sacudir esse tipo bobo de pensamento.
O riacho que corria tão limpo e onde as crianças brincavam o dia inteiro também se transformara em lodo. Parado, escuro, nem o rabinho de um lambari brincalhão, nem um bigode de bagre triste, as pedrinhas do fundo, os gritos das crianças cascalhando. As coisas nunca mais seriam as mesmas, nunca. Não havia mais tempo, pelo menos para eles.
Ouviu o barulho do helicóptero, bonito, parecia uma borboleta zoando, zoando. Tudo mudara, sentia saudade dos netos, mas mais ainda da água espelhada, cheirosa, água de Deus. Voltou as costas para o riozinho com o ingá ainda pendurado e foi andando em direção à mulher e seu cachecol que parecia a lama se desenrolando em ondas.                  
Hoje  é só um retrato na parede da memória, e como doí!

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