domingo, 29 de setembro de 2019

JANELA (Televisão)



Gosto da janela da minha sala, porque nela tenho o mundo. O bairro foi crescendo e já não sei de todas as vidas. As que conheço, contemplo. As outras, imagino. Não, não tenho vocação para mexericar. Falo pouco dos outros, mas gosto de ver. E, quando vejo, percebo um mundo que é maior. 
Vi, há pouco, o choro doído de uma mãe voltando da última despedida de uma filha atingida por uma bala perdida. Vi jovens despreparados para o amor se machucando com gritos de ódio. Lamento todo ódio que há no mundo.
Quisera eu ter o poder de curar destinos. Não estou falando de mim. Falo da mãe que perdeu a filha. Sei hierarquizar a dor. . Quando percebi, lá se foram as horas.
Da janela, vejo a pressa e a calmaria. Vejo as grosserias e a gentileza. Fotografo em mim as cenas belas. É com elas que gosto de sonhar.
Jânio tem mais de 90 anos e leva sua mulher em uma cadeira de rodas para se alimentar de sol e para ver o dia. Sempre me comovo. Despistaram os estranhamentos e permaneceram juntos.
Silvia leva o filho que não pode ver para o jogo de futebol. E narra o que acontece. E o abraça em caso de vitória ou de derrota. Daqui, só vejo a ida e a volta. O resto, me dizem ou eu imagino.
Tenho uma vizinha que,, também não pode ver. Mas que, como eu, gosta da janela.
Cortinas fechadas são um convite para o fim. Tenho, ainda, muita vida em mim que me faz gostar do belo e rezar para que o feio não incomode tanto a luz da primavera. O feio é o grito de ódio e o espancamento da alma. É o arrogante e o que mente. É o que tem inveja da alegria.
Do meu jeito, no meu tempo, com as minhas cicatrizes, eu vivo a alegria. Gosto das flores, porque penso nas gentes. Nascemos para florescer.
Ainda nem era primavera quando Ághata se foi. Tristes vidas que se cruzam nos discursos dos feios. E que, prematuramente, se despedem. A morte é pequena demais para terminar um amor tão grande.
Ouço dizeres desanimados. E compreendo. Mas como tenho, por passa tempo, ver o mundo, sei que os dias se sucedem e que os que causam desnecessária dor partirão. É a minha esperança.
Termino sorrindo para que amanhã eu possa prosseguir!

A beleza é indestrutível.




É preciso calma e serenidade mas firmeza também diante do psicopata social. O fascismo tem fascínio pela agressividade desmedida, pelo xingamento gratuito, pelo desaforo vulgar. Intentam assim, os fascistas, nos atrair para a incivilidade; pois é apenas lá, numa terra sem lei, que eles tem chance de vitória. A barbarie é o habitat natural do fascista.
Um dos motores do fascismo é o desejo de poder e ascensão social daqueles que se sentiam excluídos do protagonismo do mundo. Uns lá estavam injustamente, por deslealdade do nosso modelo econômico. Outros, por sua pequenez pessoal. Por aqueles, podemos ter alguma empatia; por estes, apenas piedade e cuidado pois eles são muito perigosos. São capacho do poder.
Prossegue o plano de instalar um regime teocrático no Brasil. Essas agressões a tudo o que é belo faz parte do plano. Mas a beleza é indestrutível.

`Lícia, você continua linda!




Hoje, é aniversário de um dia de dor. Quisera eu ter o dom do esquecimento. Ele partiu hoje, faz muitos anos. Deixou uma explicação simplória, desenhou culpas e mais culpas em mim e se foi.
Nós nos vimos poucas vezes. Sem nenhum aceno. Quisera não ter acreditado em amor único. Quisera ter me feito nova para uma nova história. Fiquei, entretanto, aguardando a primavera, aguardando um milagre que fizesse renascer um amor tão lindo.
Ele nunca mais voltou. Tive que me virar sozinha com o frio. De tristeza, fiquei rica. Quando alguém trazia alguma notícia, conversava com as lágrimas para que não viessem enfeitar os meus sentimentos. Tenho vergonha. Soube ele me convencer de que o erro foi meu. Hoje, nem sei.
Gosto da janela da minha sala, porque nela tenho o mundo. O bairro foi crescendo e já não sei de todas as vidas. As que conheço, contemplo. As outras, imagino. Não, não tenho vocação para mexericar. Falo pouco dos outros, mas gosto de ver. E, quando vejo, percebo um mundo que é maior do que a minha dor.
Cultivei a beleza durante muitos anos e, ainda hoje, me ajeito como posso. Gosto de estar bonita como uma prova de gratidão ao universo. Sem excessos. Antônio era mais novo do que eu. E a mulher que me sucedeu mais jovem do que nós dois. Disse ele que não foi a idade, mas minha distância. Falou sobre histórias que ele mesmo criou. Pessoas criam histórias e nelas vivem. E nelas se emaranham e chega um dia que é difícil saber o que é real e o que é desejo.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Fake news




Difundiram pelas redes sociais que na Bienal havia livros pornográficos destinados ao público infanto-juvenil. Logo o prefeito assanhou-se para apreensão dos referidos livros tendo como exemplo o governador do Estado de São Paulo que se recusou a distribuir livros com conteúdo contrário aos seus valores. Na disputa pelo obscurantismo cada pessoa tenta ser mais obtusa que a outra.

Fake news são notícias falsas difundidas com conteúdo intencionalmente enganoso, como se fossem informações reais. Este tipo de notícia, em sua maior parte, é feito e divulgado com o objetivo de legitimar um ponto de vista ou prejudicar uma pessoa ou grupo. A novidade não são as notícias falsas. 

As informações falsas apelam para o emocional, fazendo com que as pessoas acreditem no material “noticioso” sem confirmar se é verdade seu conteúdo. E por isso as fake News têm maior apelo que as notícias verdadeiras para aquelas pessoas que dispostas a raciocínios e formulações de juízos.

Tentam estabelecer uma relação entre o poder de crença  em fake news e o grau de escolaridade,mas, a escolaridade não limita o poder de crença. Cada pessoa crê naquilo que lhe é conveniente e isto independe de grau de escolaridade, poder econômico ou status. Os indivíduos tendem a crer no que lhes convém. As fake News nada mais são que boatos de grande circulação.

Diante dos boatos, ao invés de gastar dinheiro público para cuidar da cidade, o prefeito mandou fiscalização à Bienal e ameaçou cassar a licença de funcionamento, esquecendo-se que licença é ato administrativo não sujeito a revogação pela vontade de quem se julga dono do poder. Os fiscais foram e comprovaram a inexistência de livros de conteúdo pornográfico infanto-juvenis. Não satisfeito o prefeito os mandou novamente e os fiscais, de novo, nada encontraram. Diante da ameaça, os organizadores do evento ajuizaram ação e obtiveram liminar para fazer cessar o assédio do alcaide. O município, difundindo processualmente fake news, juntou ao processo imagem de um livro holandês traduzido para o português de Portugal alegando que se tratava de gibi pornográfico. O tal livro, para o público adulto, não é vendido no Brasil e não estava exposto na Bienal. Enganado pelo município, mas fazendo coro com a censura, o presidente do Tribunal de Justiça cassou a liminar deferida. Felizmente o STF restabeleceu a liberdade de expressão e difusão das obras escritas.

A obra prima de algumas religiões é o pecado.  Assim,  o cardeal da cidade se solidarizou com a censura, “em nome da família fluminense e das pessoas de bem”. Mas, dele, falta igual preocupação com as famílias quando  têm suas moradias destruídas por forças do estado em dia de chuva !

O conservadorismo  é uma abominação política, ética e cognitiva. É abominação política porque fascista; é abominação ética porque violento e é abominação cognitiva, porque ignorante. Mas, não passarão!



PADARIA


Desperto o dia e saio. Ainda está  escuro, vou assistindo à chegada do sol. Ou da luminosidade de dias nublados.  Gosto de ficar na padaria e vendo as pessoas chegarem. Conheço muitos pelo nome.  Rudah gosta de pão na chapa sem miolo com manteiga e café carioca. Enquanto preparam, ele olha pro  nada. Acho que medita no barulho que vai arrebentando o silêncio.            
Em frente à padaria, há Julio, que ali se aloja e aguarda algum gesto. Mora Julio nas ruas. Como tantos outros. Não entenddo de doenças da cabeça, mas sei que eles, ali, não estão por opção. Julio tem medo de albergues. Diz que as paredes caem e que se despedaçam sobre ele. Além do quê, não sabe se deixam entrar seu cachorro.
Era um dia de entradas e saídas na padaria como qualquer outro. Da chapa quente, ouço uma quentura de sentimentos. Alcides, um senhor que frequenta a padaria, estava exaltado ameaçando Julio, que parecia não entender. Gritava:"Você é um lixo você atiçou esse cachorro contra mim, vou acabar com você". O resto, não quero repetir. Alguém quis saber. Alcides gritou que o cachorro rosnou pra ele. E gritou mais. "Você é um merda, levanta daí, se for homem".
Quando Alcides se aproximou mais de Julio que prosseguia na calçada, o cachorro tomou as dores do indefeso e latiu forte e foi se aproximando de Alcides que recuou. E que entrou na padaria e pediu uma faca. E foi logo avisando: "Eu vou matar esse cachorro, quem ele pensa que é?". Eu, com delicadeza, tentei responder, "Ele não pensa, seu Alcides, ele é um cachorro. Já o senhor pensa, por favor, se acalme". E foi ali que ele disse que eu não passava de um Comunista Petista!
Nisso, ele percebeu que as pessoas filmavam com seus celulares. Tanta deselegância. Olhei para o seu pulso e um relógio brilhava um ouro que não era barato. Riqueza não lhe faltara na vida. Nem tempo de experiência. Lembrei de um livro que li e que um personagem dizia a outro que envelhecia cheio de ódio: "Que pena que ficastes velho sem ficar sábio".
Foi embora o seu Alcides. A tensão deu lugar a uma música leve que uns sanfoneiros, em busca de algum reconhecimento, tocavam na calçada.
Vi quando Julio se sentou e ficou dançando com a cabeça e sorrindo com os dentes que ainda permaneciam. Sorriso lindo o dele. O cachorro deitado no colo. Dona Tita parou e deu a ele um sanduíche. E insistiu que fosse a uma entidade em que ela fazia um trabalho voluntário. Ele riu. E disse nada. Foi dividindo com o cachorro o que comia. E rindo das sanfonas.
Chico comentou comigo sobre os nervosismos. Ele é professor. É observador das gentes. Dona Ilzinha e D.Dirce tiveram tempo de brincar com o cachorro que ficou de barriga para baixo, aguardando os afagos.
O ideal era que ninguém morrasse nas ruas. Que cada um tivesse o mínimo para sobreviver com dignidade. Há chagas, entretanto, que não são simples de serem curadas. Só se sabe que não se as cura com gritarias nem com ódio.
Seu Alcides, dona Lourdes, d.Tita, d. Dirce, d.Ilzinha,  têm mais ou menos a mesma idade. E moram no mesmo quarteirão do mundo. Um é famoso pelas irracionalidades; as outras, pela bondade. "Eles servem de exemplo", disse Rudah: "O que eu não quero e o que eu quero ser na vida".

Na saída, olhei para os dois dormindo na calçada. Julio e o cachorro. A cena era triste, mas bonita. Parecia que sonhavam. Em paz.

domingo, 22 de setembro de 2019

Estória Pro Rudah Dormir




Rudah, não sei se essa história ou estória, aconteceu, acontecerá ou é delírio. 
                                                                                                   Algúns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olimpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada.
Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”
O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.
Naquela noite, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.
— Largue a pistola, não vale a pena!

A voz era rouca,  com um leve sotaque paraíba. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:
— Quem está aí?
Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.

Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:
— Porra! Quem é você?
— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.
— Você não é real!
— Não?
— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!
O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelos lábios:
— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.
— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.
— Vou levar você para a floresta.
— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reacção alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.
O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:
— Acabou!
Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:
— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!
— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.
Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério.
Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.
Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma soltaram um o suspiro de alívio.
Os cientistas soltaram um suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um suspiro de alívio.
Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas das cidade litorâneas, soltaram um fundo suspiro de alívio.
As mães de santo, nos terreiros, soltaram um suspiro de alívio.
Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio.
As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.
O Brasil, enfim, soltou um suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, que voltou a ser redonda, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

sábado, 7 de setembro de 2019

A independência que queremos




No 7 de setembro comemoramos o dia da emancipação política do Brasil em relação à Portugal.
O 7 de setembro de 1822 foi passo importante rumo a construção da soberania nacional. Como é importante também o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, visto que não há soberania sem liberdade e cidadania para todos. Mas, luta para constituir o Brasil como Nação, permanece.
Só seremos plenamente Nação, quando os 210 milhões de brasileiros, gozarem de um mínimo de condições dignas de vida.
Quando pedreiros, estando trabalhando, não forem assassinados, por balas assassinas compradas pelo estado.
Quando Caveirões, também comprados pelo Estado, não forem mais utilizados, para derrubar moradias de pessoas pobres, deixando crianças ao relento.
Só seremos Nação soberana quando tivermos projeto efetivo de valorização da Amazônia, com respeito à floresta, aos índios e às comunidades que lá vivem.
Só seremos Nação plenamente soberana enquanto à frente do Brasil não houver uma elite do atraso, que se ajoelha diante da bandeira americana, como faz Bolsonaro.
Só seremos Nação soberana quando voltarmos a ter no poder pessoas comprometidas com o combate à miséria, à desigualdade, ao desemprego, assim como o desenvolvimento cientifico e a garantia universal de acesso à educação. E que assim defendam um projeto de Estado desenvolvimentista.
E, especialmente,  quando pudermos ter um Estado que não destrua, nem abra mão de empresas públicas essenciais à soberania.
Comemorar a independência é reafirmar compromisso de luta para alcançá-la plenamente. E ter clareza das bandeiras essenciais a cada momento.
Tiradentes, Zumbi,Apolonio de Carvalho, Barbosa Lima Sobrinho: presentes.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

ENTRE DOIS LADOS





Há uma linha divisória entre a verdade e a mentira, entre o opressor, e o oprimido, entre a transparência e a obscuridade,  entre o amor e o ódio, entre a proteção social e o desprezo neoliberal, entre reconhecer direitos e retirar direitos, entre a compaixão e a frieza, entre a empatia e a indiferença, entre o avanço e o retrocesso, entre a dignidade e a tortura, entre o respeito e a intolerância, entre a inclusão e a exclusão social, entre o amparo e o desamparo, entre a razão e a estupidez,
entre a crença e o fanatismo,
entre a realidade e a ilusão, entre a elegância
e o deboche, entre o abrigo e o sereno, entre o estadista e a aberração.

Há sempre um limite, sempre há uma contradição.
Assim, fazer escolhas não é só uma opção;
É uma necessidade transformadora da civilização.

Portanto,  precisa estar muito claro neste momento com qual lado dessa linha nos identificamos.
Qual desses lados escolhi por convicção?

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Bom Dia!



O sol arrebentava lá fora. 
O dia estava agitado, como sempre, com vozes em todos os tons. Por que algumas pessoas falam tão alto? Gritarias sujam o dia. Foi quando, em uma cadeira, uma mulher pôs os seios à disposição e alimentou seu filho. A cena me trouxe silêncio. Duas faces, a da mãe e a do bebê. Duas faces na fotografia do amor. Ela, o amor entrega. Ele, o amor necessidade. Ela, a compreensão do significado daquele instante. Ele, o instante. Sentimentos não precisam de explicação para quem os sente. Mas é bonito de se ver. O bebê quase que, animalescamente, sugando a vida. E a mãe quase que, divinamente, oferecendo sua vida para uma outra vida.  É  comum que mulheres sintam dor ao amamentar. E que esqueçam o sofrimento. Os dias vão dando tamanho ao filho. Os barulhos deixam de ser de choro e passam a ser de música. Os nossos nomes vão sendo chamados um a um. É uma repartição em que se aguardam documentos. Ouço o meu nome e me levanto com calma, enquanto contemplo um pouco mais aquela mãe e seu filho. Ele acabou e agora descansa. Ela o balança com dengo e ele gosta. O que pensa o pensamento de um bebê? Está tudo nos inícios. Ele ri do movimento. E ela prossegue. E prosseguirá para sempre sendo mãe. Uma mulher é outra depois dos filhos. As noites nunca serão como antes. As preocupações ocupam outros espaços. É assim que é. Chamam meu nome mais uma vez. Preciso ir. Precisava dizer àquela mulher o quanto aquela cena era linda. Talvez diga, depois de ser atendido. Sentado à mesa, conferem o meu nome. O nome do meu pai. O nome da minha mãe. Enquanto buscam algo, entro no tempo e brinco de imaginar como eu era enquanto amamentava. Que canções minha mãe cantava. Eu fui o filho mais novo de vários. Ela já havia experimentado a generosidade muitas vezes. Minha mãe dizia que eu era uma criança calma. Mães dizem docilidades. Nosso cordão umbilical nunca se cortou. Do leite ao colo. Do colo às mãos dadas. Das mãos dadas ao abraço da chegada depois de alguma partida. Das partidas aos aplausos e silêncios nas glórias e nas tristezas. No silêncio de minha mãe, alimento minha esperança. De prosseguir. Somos esses punhados de vida. De alimentos em alimentos crescemos. Vez em quando, escorregamos. Vez em quando, barulhos nos atormentam e cenas nos acalmam. Volta o homem com o documento. Está tudo certo. Agradeço. E volto para a sala de espera. Vou falar com aquela mulher e dizer a ela sobre a fotografia que ficou na minha retina. Procuro e não vejo. Há muitos outros rostos com luzes e rugas naquele espaço, como em todos os espaços. Uma senhora bem idosa, daquelas que são idosas há muito tempo, me sorri e me deseja um bom dia. 


Será um dia bom.