terça-feira, 15 de outubro de 2019

A PRIMEIRA VEZ QUE VI O MAR



Tenho saudade do mar. Tenho saudade da primeira impressão que tive diante do mar.Vim descalço de sonhos. Ela era o que eu tinha, quando nem vida tinha para contar história. Então, eu inventava.
A dor, eu não inventei. A primeira paixão foi cruel. Temia que acabasse. Acabou.  Chorei um choro tão doído e tão constante que aprendi a mentir tristezas. E, nelas, ia acreditando. Não queria que soubessem. Eu fui trocado e isso era fato.  Rascunhava na minha mente as minhas imperfeições. Ele devia ser melhor, se não, ela estaria comigo.
Foi assim que parti e fui para uma cidade em que ninguém me conhecia. E continuei inventando histórias. E, inventando histórias, fui sendo amado. Falei de uma viuvez precoce. “Minha mulher morreu em um dia de junho. Fazia frio e ela não acordou abraçada a uma foto minha. Uma doença súbita me trouxe o luto. E, por isso, parti.” Quando perguntavam de documentos de casamento, eu explicava que havia me despedido de tudo que lembrava aquele dia. Mudei um pouco a história para nos dizer noivos. Assim, não teria que mostrar documento. Acreditei tanto que não fui trocado que acalmei a saudade.
Encontrei outra mulher.  Repeti alguns erros, talvez. O medo de um novo abandono me fez um criador de vitórias. Apenas isso. E se foi. E se foi dizendo que eu era melhor do que as minhas invencionices.  Pedi que eu coubesse em um abraço seu. Apenas isso.  Me lembrei de minha avó que, um dia, se chateou comigo. Contei  que havia ganho um prêmio de poesia. E ela soube que nem concurso houvera. E não me abraçou.
Depois fui ver o mar. Um dia, me contaram que é tudo como as águas que vêm e que vão. Que as pegadas vão se despedindo uma a uma. As belas e as estranhas. Então, é preciso esperar. Nem sei bem se me contaram isso. Não quero mais fantasiar. No carnaval, certa vez, me fantasiei de feliz. Não. Aqui estou eu mentindo. Nem sei se existe essa fantasia. Se existisse, ia querer que fosse carnaval todo dia. Mas não é.
Era bom ir à praia. Era bom ver o quanto ela brincava com as espumas. E o quanto me beijava sem perguntas. Dos nossos sentimentos, vieram nossos filhos. Vez ou outra, me pegava dizendo que vivi o que não vivi.
Não sou um mentiroso. Sei disso. Gosto de florescer as histórias. Apenas isso. Ela percebia e dizia nada. Apenas me amava. Depois de tantos banhos de mar, ela se foi. De uma dessas doenças que ainda não conseguimos vencer. E eu fiquei. Choramos juntos entre túmulos e vidas. Havia os nossos filhos para dar alicerces. E alguma pouca juventude.
Depois dela, não mais fui ao mar. Era como se aquele lugar fosse para viver junto. Seus pulos cheios de gracejos. Seu mexer de braços. Seu correr sorrindo de volta para a areia, enquanto eu fazia castelos imaginários com as crianças.
As crianças não mais são crianças. Ela não mais virá correndo. E eu já não tenho vocação para construir castelo algum. Sobrou em mim um casebre de tempo. Ruindo a cada dia.
Estou em um hospital, me recuperando de um corte. Abriram. Tiraram alguma coisa. E fecharam. Dizem que estou bem. Que tudo deu certo. Não sei se é verdade ou não. A verdade é que tenho saudade do mar. Algumas pessoas dizem que, na morte, alguém que amamos vem nos buscar e nos conduzir para que tenhamos segurança. Fico imaginando ela saindo das águas do mar e me estendendo as mãos e me chamando para um banho eterno de amor.
Se eu quiser me lembrar das outras que partiram, consigo, mas tenho que me esforçar muito. Talvez me lembre mais da dor que senti quando elas partiram. É assim que é. Um dia, varremos as lembranças que não fazem falta e nos ocupamos de organizar os espaços que, na alma, se chamam gratidão. E senti que o amor só é amor quando não exige perfeições.
Nas lembranças de gratidão, vejo o sorriso dela admirando as minhas histórias e gostando de estar ali, comigo. Não sei se dei a ela tudo o que eu deveria ter dado. Não sei se agradeci o necessário. Éramos, um para o outro, o bastante. E foi assim que pegamos ondas, que ralamos no raso, algumas vezes, que enfrentamos profundidades. Juntos.
Quando sair daqui, quero ver o mar mais uma vez. E, se possível, entrar na água e chorar o quanto eu aguentar. E, depois, estar pronto para o que tiver que acontecer. Não. Não estou triste. Estou apenas nadando em memórias verdadeiras. E sorrindo acompanhado.

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