quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Da criança que mora em mim

 


Carta para o Rudah, Arthur, Helena, Thais, Miguel,  Bernardo, Bismarck...E quem mais vier.

Envelhecer é muito bom, é um processo em que nos  transformamos na pessoa que sempre deveriamos ter sido.  

Quando entramos no núcleo dos idosos, o sinal exterior é a compra de um compartimento de remédios com duas fileiras, para usarmos dia ou noite, de segunda a domingo.   

Não gosto de expressões como “o senhor está muito bem para a sua idade”, e na verdade, não gosto que me chamem de “senhor”, por isso respondo "senhor é quem tem escravo, e quem trata  o outro de senhor é escravo, como não tenho escravo, e como você não é escravo, não há nenhum senhor". 

Outra coisa que me incomoda são as notícias informando quem morreu, ou as mensagens relatando os problemas de saúde que amigos estão enfrentando.

Sempre gostei de mandar flores dando parabéns e não me sinto bem mandando flores de pêsames, nem ramalhetes com votos de pronto restabelecimento.

Envelhecer para alguns, é uma coisa que começa quando ainda se é considerado jovem e começa a usar óculos para aliviar a vista cansada. Apesar do peso em cima do nariz e da visível interferência estética, os óculos vão bem no início, mas, de repente, não conseguimos mais nos livrarmos deles. Sem óculos, não lêmos mais, não dirigimos mais, não vamos mais ao cinema, não vamos mais ao teatro e, dependendo do tipo de bifocais, ficamos dependente até para subir escadas.

Outra praga do envelhecimento é que ele começa na meia-idade, mas depois não para. O grande exemplo disso são os checkups realizados com intervalos cada vez menor, e que as melhores notícias são as que contam que, aquela coisa que perigava termos, ainda não temos, mas no próximo checkup convém checarmos se não estamos tendo mesmo ou se já se transformou em outra coisa. Checkups prolongam a vida, e ficamos dependentes deles porque ficar velho não é bom, mas a alternativa é pior.

Além do envelhecimento físico, ruins também são os comentários pseudoeducados daqueles médicos com quem não temos nenhuma intimidade:

— Para a sua faixa etária, seu colesterol está surpreendentemente bom.

Ou daqueles que fomos ex companheiros de trabalho, que somos  amigos:

— Você já tá naquela idade de quem não vai à farmácia para comprar bronzeador; vai para comprar vitamina D.

Trágico também é o envelhecimento comportamental que tentam nos impor.

Se se gosta do show do Bruno Mars, dizem que é porque, na verdade, ele é uma coisa careta, um filhote de Michael Jackson, e que o pessoal jovem de verdade não gosta.

Se não gosta de um filme como “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, é porque esse é um filme para a garotada, e não gostou porque não entendeu.

Se criticamos algum trabalho de nossa ex atividade profissional, de nossa formação, dizem que a opinião é analógica, e o mundo agora é digital.

Antes que eu me esqueça: outro problema do envelhecimento é a perda da memória. Foi por isso que escrevi este texto!

Para não deixar de lado coisas que aprendi com o tempo, e quero ensinar ao Rudah:

Antes de um violão ser um violão, ele era uma árvore. E servia de suporte para o canto dos passarinhos.

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