domingo, 26 de abril de 2020

Carta para o Arqueólogo do Futuro 2









Foi ontem, por isso estou ainda anuviado. Um sorriso lindo, um pedido e uma desatenção. É assim que me lembro. Sei que posso corrigir. Há muito a ser escrito em nossa história. Mas é bom que eu sofra e que eu aprenda. É assim que vejo a vida, uma escola para lapidar o coração.

Meu neto não tem ido à escola como tantas netos, filhas e filhos de tantos que aguardam essa pausa passar. E, na pausa, temos convivido mais. Ver o seu correr divertido já faz com que eu esqueça os problemas nada divertidos que preenchem boa parte do meu dia, mesmo em casa.


Foi ontem, como eu dizia. Um dia em que elevei a voz, mais de uma vez, em reuniões intermináveis à distância. As irritações foram se avolumando. O sistema caía. Caía a minha calma de ter de dizer, mais de uma vez, a mesma coisa. Por que não praticam o ofício da atenção? Por que se distraem com outros afazeres? Dia difícil foi ontem. E, de repente  ele chegou com a alegria dos que ainda engatinham na vida. Reparei rapidamente os cabelos, os cachinhos. Reparei na vontade de estar comigo e reparei na decepção diante do som do meu "não".

"Vô, vem brincar um pouco comigo". Meu silêncio não o incomodou. Os meus olhos que tanto reparam voltaram para a tela, Vô, conta uma história para mim". "Agora não dá, Rudah. Pede para sua mãe , pro seu pai". E não mais olhei. Deixei aquele pedaço de ternura olhando sem ser olhado. Ele ainda ficou alguns instantes aguardando que eu mudasse de ideia. Eu via que ele me olhava, mas eu não correspondia o seu olhar. Como fazemos, quando não queremos ser incomodados.

Onde cheguei?! Meu neto não pode ser um incômodo. Meu coração acelerou. Eu quis que ela saísse logo. Acalmei, quando ouvi aquela mesma voz, que me faz querer viver, chamando "mamãe". Os alívios duram pouco, quando não fazemos o que devemos. É isso o que sinto hoje.

Despertei antes do dia. Fui ao quarto onde ela dorme sorrindo. Os seus sonhos ainda não conhecem solavancos. Fiquei sentado admirando. O cheiro do café foi preenchendo o gosto de uma manhã de outono. Uma indiscreta lágrima deu alívio aos meus sentimentos. O abracei e comentei sobre a riqueza que era viver com ele. Eleconcordou com a cabeça e com o sorriso. 

Enquanto arrumei o que iriamos comer, pensei sobre o ontem. Ele  riu e disse que não tinha importância. Eu discordei. Ela insistiu "Você estava ocupado, ele compreendeu". Não entendo das pedagogias da compreensão. Das idades em que se sabe uma coisa ou outra. Não. Não quero pensar assim. Sou vô. não quero autorizar o tempo passar. Pareço estar exagerando. mass prefiro pensar assim, se não prestar atenção agora, desperdiçarei os dias do seu crescimento. Lembro de amigos que assim dizem. Que, quando viram, os filhos já estavam prontos para o voo. E que o silêncio da ausência deles em suas casas tinha cheiro de saudade.

Ele  veio correndo , me deu o abraço dos que nada cobram. Olhou nos meus olhos e pediu colo. Eu consenti. Eu a apertei tanto que ela brincou soletrando uns "ais". "Estou sendo esmagado igual à história dos passarinhos". "Quer que eu conte uma história"? "Quero, Vô. A mesma,  quando o pai salva o filhotinho". "Eu conto, Rudah". Eu disse que havia outras histórias para serem contadas. "Só mais uma vez, Vô. Gosto tanto do final. Fica todo mundo feliz".

E o sol, sem preguiça, atravessava a janela. E um calor bom tirava o frio da noite e dos pensamentos de ontem. Eu e Rudah comendo histórias e pão com manteiga, bebendo vida e um café perfumado. Sei que o dia não será fácil. Na minha cabeça, os problemas continuarão a conversar. Mas sei, também, que agora é hora do poético encontro. Da quentura dos sentimentos. Do amor. Seguirei amando depois. Qando a quarentena acabar, será um dia melhor...

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