quarta-feira, 23 de setembro de 2020

AS PERDAS DESSE ANO

O marido se foi. Ela teve os filhos. Seu filho mais novo brincava comigo como eu fosse seu pai. Desde sempre, ele gostava de livros e eu lia os livros com ele. Eram outros tempos. Brincávamos na areia da praia. Cantávamos músicas de acordar. E prosseguíamos acreditando nos afetos.

Os dias vão descartando as folhas e outras vão surgindo, aguardando novas coragens. Ela era corajosa. Não é mais. Coleciona medos, involuntariamente. Às vezes, pergunto se ela morreu. Ele responde com amor. Fala que, um dia, estaremos todos juntos. Explica que a morte não é o fim. Mas eu me disperso e não ouço tudo. Viajo pela nossa infância. Pelos textos que eu escrevia. Sempre quis ser poeta, mas só publiquei em mim os sentimentos de todos os tempos que vivi.

O sorriso dela era muito bonito. Eu dizia e ela não desmentia. Nas despedidas e nas doenças, nos olhávamos com a destreza de quem vai vencer. E permanecer. Mas ela foi embora. Sem mim. É o que reclamo com quem tenta me dizer outra coisa. É o que digo na minha oração. Não que eu queira ir. Gosto daqui. Gosto das lembranças das nossas conversas. Dos dias em que acordávamos sabendo que estavamos juntos, mesmo morando em cidades e estados distantes. Que cozinharíamos juntos. Que reclamaríamos juntos de alguma nuvem teimosa e decidida em esconder nossa alegria. Destes dias cinzentos, dessas chuvas finas.

Ela gostava de festa. Eu menos. A festa era ela. E logo é natal. Sem ela.

Quando sonho com ela, é sempre sorriso. É isso um sinal? De que ela está bem? De que ela me vê, enquanto encontro seu cheiro nas lembranças de tantos anos?

Digito. Caço palavras. Ensaio outras. Durmo. E acordo achando falta. Sei que é assim. Que todos os dias lágrimas despencam de quem fica, enquanto alguém vai. A saudade é um canto de amor. Canto na língua da minha infância canções de fé. E, assim, acalmo o dia. Ela está bem. Linda como sempre. Sem nuvem. Sem nenhuma dor.

E, do nada, me vem um sorriso de alegria. Sim. Ela está bem.     

Quando os mesmo sorriso dos olhos, são correspondentes ao dos lábios, como são todos os sorrisos bonitos.

Que um dia nossos desejos, vontades coincidem, mas se não coincidirem, que a sua prevaleça.

Era o que falávamos em coro quando partiámos, e foi o que o meu silêncio  disse na despedida.

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