quinta-feira, 17 de junho de 2021

Urgentemente.

Nossas dores estão expostas. Sofrem todos os que perderam alguém querido ou que convivem com as sequelas deste vírus, e  há uma dor que é filha da barbárie, que destrói a alma e a consciência, que é a de acompanhar o desmantelamento de todos os avanços sociais dos últimos anos. 

Voltamos décadas e a terra ficou plana. Fomos para um buraco de onde não se vê saída. Mas, além desses males, as relações entre as pessoas criaram rachaduras. E essas parecem refletir como e frágil o caráter de muita gente nesse momento de grave crise sanitária e de perigosa ascensão do fascismo. A pandemia, o isolamento e o olhar para a dor do outro significam um descobrimento e uma revelação. 

Não é preciso esforço para notar aqueles que têm o que chamo de “sentimento do mundo”. Não é a declaração de ser de esquerda, de direita ou de centro. É o olhar para dentro, para interior e entender a vida sem nenhuma explicação. A vida no que ela tem de mais natural: só viver, talvez, só sobreviver. Para mim,  isso estabelece com quem eu quero fazer a travessia e o enfrentamento. não é preciso grandes gestos. Resistir é o bastante. A resistência pode ser a solidariedade, o olhar amigo, o afago. Se a pessoa não tem a força para o embate, a voz amiga, o silêncio cúmplice podem ser a companhia que ampara a lucidez. É a hora do gesto, ou da intenção do gesto, como acho que já escreveu em um de seus livros Chico Buarque "se trago as mãos distante do peito, e por que há distância entre intenção e gesto" . Mas temos que demonstrar, de alguma maneira, a repugnância pelo culto à morte e o nosso compromisso com a vida. Depois do início de esperança em um intervalo menos sombrio, o Brasil volta a ter  quase três mil óbitos diários e o número de 500 mil mortos já está bem perto. São meio milhão de brasileiros que ocuparão as ruas silenciosamente e povoarão meu imaginário. Somos um país que precisa se reencontrar, pois a divisão se estabeleceu entre a grande maioria. Tenho dificuldade de convivência com quem vive em um mundo paralelo, onde a mentira e a ilusão são as regras. Nesse mundo, o real, quando surge, me ajuda a reforçar a que não aceito essa a fantasia. A realidade é tão triste, ruím que o acordar é, uma espécie de transe que me hipnotiza e me amedronta. Algumas situações me levam a uma reflexão. Escutei de um amigo uma história que dificilmente seria filme, de tão triate. O pai, morreu de covid no hospital. Já impossibilitado de vê-lo há vários dias, internado numa UTI fria e austera, recebeu a notícia que não poderia nem o pai para o sepultamento, pois seria perigoso o contágio, aceita mortalha do hospital e desce para encontrar o caixão, quando descobre que esse será entregue fechado, por segurança. Pergunta para o homem a sua frente, vestido de roupa de astronauta, como saber se é mesmo o seu pai que vai ali dentro. Maquinalmente é mostrada uma foto tirada minutos antes de fechar o caixão. Esse é o reconhecimento e a despedida. 

Por isso, o choro incontido deve ser também de alerta, de indignação e de revolta. E é bom que o grito substitua a apatia e ecoe forte e alto. É preciso voltar às ruas, respeitando quem optar por continuar o isolamento. Mas será um sinal de esperança e um gesto de resistência. Um andar, ainda que silencioso, pelas ruas que têm que voltar a ser nossas. Resgatando as cores, verde e amarelo, deixando claro para os fascistas que roubaram a alegria de um povo, mas não conseguiram roubar a esperança. Há maneira melhor de homenagear os que se foram e continuar a viver a vida. Devagar, mas urgentemente. 

Apoiando em que diziaminha Mãe: “Nunca se desiluda. Quem se desilude morre por dentro.  É urgente viver encantado. O encanto e a poesia são única cura possível para a inevitável tristeza.”

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