domingo, 15 de dezembro de 2019

OLHAR ANESTESIADO




A tragédia de Paraisópolis é um horror cheio de erros contra a constituição e contra os Direitos Humanos. Na primeira versão oficial dada pelos policiais falou-se em enfrentamento por parte dos frequentadores do baile, em pisoteamento, em apologia às drogas e sexo. Depois, videos trazendo fatos mostram o ataque deliberado por parte das forças de segurança (ó ironia) contra os jovens, e agora, laudos periciais apontam para sufocamento, enforcamento, ou seja, o assassinato das vítimas. Não houve confronto. Parece que esses policiais estão sendo treinados para crer que vidas negras não importam. E não é por acaso que seu pensamento combina muito com os que gostariam sinceramente eles não existissem mais, que a região fosse dedetizada e parasse de existir assim, esfregando a pobreza nas redondezas. É incômodo. Compromete o IPTU, é desagradável, por isso os muros dividindo os mundos. 
A sordidez do jogo desigual deixa as periferias, as favelas, as comunidades pobres todas reféns das igrejas ou de algum boteco para se divertirem. Nada mais. Não há opções. Dentre essa população moram mil vocações: médicos, engenheiros, artistas plásticos, bailarinos, atores, astronautas, cientistas, filósofos, professores, ensaístas, escritores. Mas, como a regra do jogo é educação zero para o povo, e o não direito ao compartilhamento das riquezas da sociedade como um todo, fica meio proibido sonhar ali. E como não se tem teatro, nem cinema, nem modo de se expressar isso, se o indivíduo for cantor, o melhor dia da vida dele é o dia que ele canta na igreja. E Deus ganha aí todo o território da sua vocação. Se sou ator e moro num lugar onde a melhor performance “teatral” que se vê é a de um pastor, é o que eu vou ser então. Eu por exemplo, se tivesse nascido numa favela e nela tivesse sido criado, certamente o melhor dos meus destinos seria ser uma rapper, uma funkeiro, ou então, poderia me dedicar e chegar a ser uma importante chefe de facção. Quem pode afirmar que não? Quando o Estado deixa desnutrido intelectualmente, culturalmente uma população, ele está exercendo o abandono, o mesmo abandono que muitos pais oferecem aos filhos muitas vezes. Não se importam com o seu destino. E mesmo que esse exército de pobres se transforme numa multidão de servidores domésticos, cuidando com dedicação os filhos dos ricos, construindo suas casas, cozinhando, servindo, lavando suas roupas, levando os meninos ao colégio, sua importância humana segue sendo nenhuma. Há um desprezo por cima, como se fosse um requinte desta crueldade. O baile funk não é crime, e sem ele a coisa vai ficar pior. A alma precisa de cultura. É ali o único encontro que se tem com a arte. Adolescente quer se divertir, dançar, cantar, se libertar, curtir. Faz parte da saúde jovem. Tanto é verdade que jovens ricos fazem festinhas “quentes” em suas casas, com os pais sempre ausentes. Frequentam suas raves onde rola droga farta, sexo nos banheiros, apologia à sacanagens,  sem temer a invasão da polícia. Lá a polícia não vai. E os pais compreendem, para eles não há delito: “são brancos, ricos, adolescentes e jovens. É natural”.
Se as festas ricas  são abarrotadas de tudo que dizem que há no baile funk, por que a polícia não vai nelas? O que se combate nestas agressões policiais não são as drogas. Por que a mesma ação não é feita nas zonas nobres das cidades, será por que haja ali maciça presença de meninos mimados, sem limites na vida e nos cartões de crédito, capazes de qualquer coisa, e confiantes de que seus pais têm contatos no judiciário, na alfândega, nas fronteiras, e pode fazê-los desaparecerem para esfriar as coisas num apartamento em Dubai, se der alguma merda? 
Há muitas boates famosas, abarrotadas de brancos, com bundas brancas tentando ir até o chão. São ricos, transando na cara de todo mundo pra geral ver, à base de muita droga sintética e cara, que baile funk algum nunca ainda conhece. Até substâncias para anestesiar cavalo tem e quem me contou foi um usuário contumaz e extremamente seguro de sua impunidade.
Circulou nas redes o algum comentários: “a culpa é dos pais que deixam os filhos de 14 anos num baile desse, quem mandou tá lá dentro, rebolando a bunda?”, “É isso que acontece, com tanto sexo e drogas rolando, queriam o quê?” Bem, os comentários seguem na linha da criminalização daqueles jovens,. Nenhum deles tem nome, sobrenome, importância. São pobres e pretos por isso devem morrer, “a polícia tem que subir no morro e matar todo mundo, subir lá e mata todo mundo pra gente ficar livre desse inferno”. 
Que tristeza! Qual é o seu olhar? Se você brada sua fé em Deus e em nome Dele, em nome da ordem, já se perguntou o que faria seu Jesus Cristo nessa situação? Para mim, esse anestesiamento,do olhar, essa falta de sentimento, esse não se importar com a sanguinária cruzada do rico contra o pobre, e que se utiliza da força do Estado, da ignorância e do despreparo de vários policiais, também oriundos da pobreza, para que sem pena, ou consciência, se voltem contra os seus.
É bom ficarmos de olho porque quem está anestesiado não sente que está anestesiado. Claro, né? Então, repare se o seu olhar não está desfalcado da sensibilização da realidade. Criminalizar quem sempre perde o jogo empobrece muito a riqueza. 
Putz, o exercício para não ter ódio está me matando.

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