domingo, 24 de janeiro de 2021

Kush & Taga.

 


O sol rachava a caminhada naquele janeiro, e a conversa soprava uma brisa metafísica sobre os nossos sentimentos, nossos entendimentos. Júlia e Eu, de assunto em assunto, estacionamos as emoções para falar de Kush.

Kush era um cachorro. Chegou tímido tateando os cheiros da casa. E da gata. Sim, havia uma gata, Taga. Taga parecia professora dos jeitos de Kush. Ele se movimentava quase que deslizando. E, se não a via, escondida que gostava de ser, procurava-a sem incômodos nos  cômodos onde moravamos. Quem disse que cão e gata precisam brigar? Que precisam se estranhar?

Os anos de alegria vão se desligando, e outros se ligam sem que possamos decidir. Do jeito filhote ao entardecer cansado, ele ocupava aquele mundo. Era preto e foi se esbranquiçando como acontece com as forças que se despedem.

Na caminhada, uma água para refrescar os pensamentos. E o pensamento nele prosseguia na fala de nós dois. Ele gostava de gente. Esmerava-se em desfilar com elegância e olhava, em pose de atenção, para receber elogios. Os passeios com ele eram obrigação de amor. Nos movimentos de saída, ele já aguardava na porta, ensinando gratidão. Sua felicidade dissipava qualquer antônimo. E o dia começava bem. No pôr do sol, ele admirava como gente. E, como gente, olhava as expressões dos que sabem se expressar quando conseguem ver o espetáculo único de todos os dias.

Júlia se emociona para falar da despedida. Pede desculpas. Eu digo, em sorriso, que compreendo o amor que eles nos deram e a dor de quando se vão. Conto dos meus cachorros que se foram. De um que partiu o ano retrasado. Do último abraço, do último olhar, das primeiras lágrimas sem ele.

Julia pede que eu conte da missa. "Fomos à Igreja, e o padre, quando começou a ler as intenções, disse:  Missa de sétimo dia de Maria Antonia e de... me desculpem, mas tem um nome aqui que não consigo pronunciar. Deixa eu soletrar K U S H. Tem alguém da família?
E eu, com riso nervoso e os olhos marejados, expliquei que era o meu cachorro. E achei que o padre não gostaria. Ocorreu o contrário, o padre me acolheu com sorriso. Tempos depois, nos encontramos na rua e ele se lembrou de mim e disse: "Viu que até o Papa Francisco disse que os cachorros têm lugar no céu?".

Algum silêncio nos encontrou, enquanto minha imaginação brincava de desenhar palavras. Como é bom encontrar pessoas que não têm medo de demonstrar os sentimentos. O que é o viver sem o sentir?
Nos sentimentos, encontramos recados todos os dias. Misteriosamente, eles aparecem e tentam desaparecer nossas insensibilidades. São trechos de vidas, são dizeres de encantamento, são silêncios reveladores. Por isso presto tanto atenção ao que os outros me dizem. Abro os compartimentos da escuta para que histórias de amor me preencham.
Por pessoas, por animais, pelos dias, pelas causas.

No fim da caminhada, Eu e Júlia e voltamos pra a vida imaginando Kush brincando em algum jardim das transcendências. E abanando uma alegria capaz de ultrapassar o invísivel.

Alegres, terminamos o dia.

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