terça-feira, 25 de agosto de 2020

ANTES DE CHEGAR A PRIMAVERA.

 


Gosto de estar aqui. Foi assim que começamos a conversar nesse final de mês que antecede a primavera, com o céu azul que acho lindo, e um sol amarelo que chega a "esquentá" a pupila, ela riu e começou a falar. Nossos encontros,  mesmo não sendo tão frequentes é como se estivéssemos sempre juntos. Concordei e ela continuou.

O balanço me preenche de ontem e de amanhã. E isso é bom. Hoje, nem a brisa que acompanha o meu movimento acalma o mundo.

Sou de uma família de mulheres. Três irmãs criadas por uma mãe viúva. Balançamos muito na vida. Ora víamos de cima as plantações de tudo, ora era por baixo de tristes cobertas que nos púnhamos a espantar a frieza dos dias. Sorrisos e pausas. Esperanças e medo. E os dias foram irrigando nossos pés. E, assim, crescemos.

Eu disse:

-Esses gritos enlouquecidos contra uma criança que infância não teve. Roubaram a inocência de seu corpo sem tempo. Um tio, outro tio, um avô. Sei pouco do tanto que a atormentou covardemente. Homens bichos. Podres de alma.

- Não sou julgadora. Não sou nem serei igual a eles. Não sou promulgadora de vinganças ou ódios. Sou uma mulher em um balanço.

- Lembrei que ela tinha cabelos longos, quando éramos criancas, e gostava de ficar sentada aqui ventando vida no mundo. Não faz tanto tempo. 

-Ela disee:Cresci crescida. Verguei os que se puseram contra meu movimento. Valentia sempre tive. Violência, nunca.

Minha mãe sofreu duas vezes. Por um marido que fez morrer as suas crenças em um amor verdadeiro e pelo mesmo marido que morreu de doença sem cura. Foi feliz só depois, quando nos viu desabrochando sem medo. Foi curando a dor com as colheitas de seu plantio.

Sou um pouco minha mãe. Hoje mesmo, ela me disse isso, enquanto eu falei sobre minhas discordâncias dessa gente que domina a verdade. E sempre gritando.

- Eu disse. Gosto do seu  balançar. Do movimento do seu corpo, sentada nesse antigo banco. Das mãos atadas a cordas devidamente pensadas para segurar sem espantar a liberdade. 

-Ela disse: Sinto a liberdade em cada movimento que decido. Ai dos que imaginam decidir por mim! Faço o contrário! Por precaução, inclusive. Obediência só à bondade. Que me venham com delicadeza e me convençam. Ou então que se contentem com o meu desobedecer consciente.

Você é um homem que bebe da mesma água do respeito em que, desde cedo, aprendi a gostar. Quando minhas irmãs e eu nos púnhamos a duvidar dos dizeres do meu pai, minha mãe nos silenciava com sua decisão de não sujar a semente que nos fez viver. Era ela quem comandava a sua vida. Era ela quem nos inspirava a comandar a nossa. Nos deu limites. Somos livres para o balanço do que nos faz bem ou mal, do que nos acalma ou nos causa horror.

Eu disse: Tenho horror ao indecente discurso da mentira. 

-Ela disse: Sonho em ser mãe, em educar meus filhos na alegria. Virei aqui com eles, certamente. Empurrarei no começo e, depois, assistirei satisfeita ao balançar de cada um. 

Eu disse: Que decidam eles os próprios movimentos. Ensine a bondade,a gentileza, a ternura, o restante se ajeita. Continuei, o mundo está estranho. Sei disso. Mas não quero o desânimo. É um ciclo. Vivemos tempos de aridez de sentimentos. 

-Ela disse: As alternâncias existem. Não sei quem decidiu, mas é assim.

Gosto disso. Tenho em casa o que desejo ao mundo. Liberdade com responsabilidade. Verdade com respeito. Amor com amor.

Eu disse: Gosto de estar aqui. Nesse parque. Nesse balanço velho e eterno. Nesse mundo com suas alturas e funduras. Gosto de vê-la, de conversar com ela.

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